Logo da primeira vez, fizémo-nos ao Bairro Alto. Teria quinze anos, mas dos pouco vividos, dados fundamentalmente às crises existenciais. O Bairro não era para mim mais do que um nome. Uma ideia difusa.
O carro encostou junto ao miradouro de São Pedro de Alcântara para nos deixar sair. Assim que pisei o asfalto e olhei em volta, percebi que não conhecia a minha própria cidade. A praça borbulhava de gente, os batuques dos
djembés elevavam-se no ar e, ao fundo, as luzinhas de Lisboa faziam vezes de moldura. Sentia-se a energia como um estalo na cara.

Estava uma noite quente, cheia de cheiros. “Aqueles ali estão a fumar ganza” sussurrou-me a amiga, forçando um adolescentíssimo ar
blazé. Inspirei mais profundamente. Ganza… Esperava qualquer coisa agressiva, mais de acordo com os avisos de pânico que tendiam a acompanhar o tema. Pelo contrário, parecia-me adocicado e nem sequer desagradável. Mas era o ritmo das percussões, isso sim, que unia a montanha de gente que ali se reunia. Uns rodavam fitinhas no ar, praticavam malabarismos amadores, outros ajoelhavam-se em cima dos instrumentos, frenéticos, criando grandes círculos sinfónicos.
Pum, pum, pum, pum… Por momentos deixei-me estar, hipnotizada.
Depois atravessámos a rua e penetrámos as ruelas desconhecidas. Espaços apertados, construções em tanto diferentes daquelas a que estava habituada! As pessoas sentavam-se nos passeios e conversavam animadas. Lembro-me claramente das
Dr Martens, essas botifarras tão noventa, desfilarem diante dos meus olhos em cores várias. Isso e os eternos
All Star - desde que devidamente rotos e emporcalhados. Era a malta do
grunge, os fiéis seguidores de Pearl Jam, para quem o Nirvana, mais do que a superação das ilusões desta vida, era o veículo de Cobain para o mundo. Também eu tinha um grande fraco por “Smells like teen spirit” ou “Oceans” e me sentia encaixar nessa onda de neura.

Rua acima, rua abaixo e dei por mim a jogar snooker num sítio com ar tascoso. O cérebro ia registando tudo como se quisesse garantir que não me enganava no protocolo a cumprir nas vezes seguintes: começar a noite num salão de jogos,
check!
Depois seguimos os nossos
chaperones até um bar com paredes amarelas e espelhos pendurados. Lá fora o fumo, a conversa, os risos. E dentro algum sossego, música ambiente, esse amarelo quente que anos mais tarde acabaria por conseguir espetar na parede do quarto... Tudo novidades a absorver mas, ao mesmo tempo, como que saído de um sonho de infância - quase em câmara lenta.
Foi então que, de volta à rua, de repente, no meio das sombras daquela envolvência estranha e boa, ouvimos um barulho muito forte. Em questão de segundos e sem que nos déssemos conta, metade das pessoas corria rua abaixo e a outra metade, na qual nos incluíamos, agachava-se atrás dos carros. É que na altura ainda o trânsito circulava no Bairro Alto e ao longo das ruas os carros estacionados criavam refúgios de todo o tipo. Não sei bem como, portanto, vi-me escondida atrás de um deles. Espreitei através do vidro e avistei um homem de barba por fazer e camisola de alças à porta de um dos prédios, de pistola em punho. Alguém lhe gritou de longe para se acalmar e o resultado foi mais dois tiros para o ar, bem ao jeito do faroeste. Um autêntico Clint Eastwood. Que aventura! Nunca mais me esqueci dessa noite. Assim que o homem voltou a entrar no prédio a minha amiga puxou-me pela mão e corremos rua abaixo com o coração aos pulos.
Então isto é sair à noite!, pensei. Estava um bocadinho longe da verdade, mas nunca me poderia vir a queixar de falta de emoção nessa estreia.
À saída, perto do ponto de encontro onde nos iriam buscar, passámos por um bar que era também uma biblioteca. Que bizarra e maravilhosa ideia! Pelo lado de fora das vidraças vi pela primeira vez esses intelectuais de cabelo seboso, oculinhos redondos e nuvens de fumo por cima da cabeça. A toda a volta estantes com livros que as pessoas iam
MESMO buscar para ler.
Quando puder decidir sozinha onde quero ir, é aqui que venho! pensei. Mais tarde descobri que nunca se decide verdadeiramente sozinho...