25/02/08

ontem, no S. Luiz


Mayra Andrade.

5 estrelas.

22/02/08

embrulhar o fio na meada

Vou atrasada já, o trânsito cede à chuva e atrasa-me o percurso até à Baixa. O dia não é dos melhores, a impaciência baila pelos cantos que conhece tão bem à casa, tanto porque passar a manhã em frente ao computador me faz doer as costas como porque os ataques de riso descontrolados de quem não tem culpa de ter catorze anos me impedem de explicar o que devo – no caso, a constituição e função do aparelho genital humano. Vou acelerando quando posso, maldizendo os semáforos que me contrariam e tentando, sinceramente, não atropelar almas inocentes. Revejo o dia que passou, faço o balanço, tento descontrair. Recordo o momento em que a criatura me perguntou, franzindo o sobrolho para o livro e com um ar muito enjoado: “cli... clítoris? ó S. também tenho que saber este?...” Ao que eu respondi que esse era o mais importante de saber, antes de me aperceber que era uma piada que não faria ali outra pessoa rir que não eu. A criatura olhou-me com espanto. O relógio, no entanto, disse-me não haver tempo para mais demoras. Agora, e apesar disso, vou atrasada! Mentalmente faço todo o percurso em antecipação, visualizo todas as ligações possíveis, a ver se chego à rua do Crucifixo a horas. Vou também ansiosa pela novidade. Por sorte, ainda antes de pensar no assunto, cai-me do céu um lugar para estacionar.

Subo as escadas de madeira e espanta-me como são largas. Nunca vi um edifício normal de habitação com um aspecto tão amplo, quatro pessoas subiriam lado a lado os degraus sem problema! Cheira a antigo, não propriamente mal. Não sei explicar porquê mas tudo tem um ar muito resistente e dá vontade de ficar simplesmente a olhar para as paredes.

Toco à porta. De imediato ouço o “clic” do trinco e encontro uma cara sorridente do outro lado. Depois de despir o casaco e deixar a mochila na entrada, à confiança, digo o meu nome ao balcão. O rapaz rabisca o papel que tem à frente, volta a sorrir, diz que está tudo. Dirijo-me para a sala à esquerda. Já começou. Dez cabeças viram-se para me fixar durante uns segundos e três dos seus donos começam a gesticular freneticamente, apontando-me os pés. Fico estática. Situação embaraçosa número um: entrar numa sala cheia de gente silenciosa e fazer com que as atenções se centrem em mim por não estar a cumprir um requisito. Que requisito? Os sapatos - lá acabo por perceber - têm que ficar à porta. Obedeço rapidamente e esgueiro-me depois para o primeiro lugar vago que encontro, com as meias (de bonecos!) a fazer-me deslizar no soalho. Sento-me entalada entre a parede e um amiguito qualquer, o que não me permite descolar os braços do tronco e se torna muito incómodo. A sala cheira a gente. Está calor a mais e não consigo evitar olhar a pilha de sapatos à porta. Já repararam como os sapatos têm muito pior aspecto fora dos pés? Deformados, tristes, os atacadores murchos e os interiores escuros a pedir distância.

O gajo virado para a audiência lá à frente fala suave, pausadamente, para um microfone. Senta-se em posição de lótus sobre um palanque de madeira profusamente decorado com imagens e panos e objectos cujo significado não entendo. A cada duas palavras dá três risadinhas. Tento não me fixar nisso, ouvir o que diz… o que diz ele? Fala dos momentos em que nos irritamos com os outros e no como isso é negativo para nós próprios. Fala sem grande conteúdo, se querem que vos diga. E, depois de uma banalidade qualquer, lá saca de novo da gargalhada arrastada (começo nesse momento a entender a ironia da situação em que me encontro). Gostava de poder explicar o tom com que o senhor fala, fazendo subir sempre a entoação na última sílaba da última palavra de cada frase, como se fizesse um relato futebolístico em câmara lenta. Mas não é fácil. Haveria que estar presente. É milimetricamente sempre igual, tal como se entoasse uma ladainha decorada ao longo de uma vida. O conteúdo perde-se. A impaciência força-me então a mudar de lugar mais para a frente, onde vou aterrar ao lado de um indiano bem mais antigo que eu. Incomoda-me que esteja descalço. Tudo me incomoda naquela sala. O rapaz da recepção entra nessa altura, colocando-se atrás de nós e, imagine-se!, não só respira ruidosamente (e eu pronta a bater em alguém), como ainda se ri também de cinco em cinco segundos, tal como o outro, com gargalhadas de sopro. Aguento, estóica que sou. Vou descontrair e vou sair daqui mais próximo de aceitar os outros! E vai de primeira meditação para “ficarmos todos mais receptivos”. Não corre mal porque é a do costume, embora o efeito não seja grande coisa. O da recepção decide então que tem fome. Enquanto vai lá fora o indiano sai também, deixando vago o lugar ao meu lado. Mesmo ali à mão de semear… Obviamente que o outro volta e despeja-se logo na cadeira a mastigar. A MASTIGAR!! Estou tão fora de mim que já vejo pintinhas verdes por todo o lado. Quanto mais me irrito, mais furiosa fico por estar furiosa e porque estou ali precisamente para aprender a não me irritar com as pessoas. Respiro fundo, cerro os maxilares, faço balançar os pés sem sapatos para trás e para a frente como fazem as crianças. Ele nunca mais acaba de mastigar. Nhac, nhac, nhac, nhac… O que raio será que tanto mastiga? Imagino-o a ir ainda pescar com a língua um pedacinho esquecido por triturar entre os dentes, a fazer um ar regalado e a continuar com orgulho a tarefa deglutidora. Quando é que… ai… já está?... não! Ainda não, só mais uns segundos… Finalmente. Um último nhac e acaba. Posso então tentar ouvir o que diz o senhor das barbas no microfone. Que para começar o ideal é pensarmos no quão gratos devemos estar à nossa mãe que, incrivelmente, nos deu tanto amor. “É realmente fantástico… uma pessoa… modificar a sua vida… os seus hábitos… sacrificar-se… por outro ser” (as reticências são mesmo as pausas após o elevar de tom da última sílaba). Só que eu hoje estou com outra veia activa e desatam a saltar-me ideias evolucionistas à mente. Não é nada fantástico, é que se não fosse assim não estávamos aqui hoje e ponto final. E logo me arrependo. Não S., pára. Agradecida, é para te sentires agradecida agora. Vá, um, dois, três: agradecida. Não? Outra vez: ai que agradecida, agradecida profundamente me sinto!! Não, não parece estar a funcionar. Estou chateada, isso sim, com aquilo tudo, aquelas pessoas que vão na onda e abanam afirmativamente a cabeça. Penso em ir-me embora. Aguento mais um pouco. E então o clímax surge inesperado! “Nós temos muitas vidas… podemos achar que não… podemos dizer que não nos recordamos de outras vidas… mas… também não nos recordamos do que almoçámos ontem… na verdade… não recordamos quase nada…” Já ouviram argumento mais fantástico que este? Eu não me lembro de algum dia ter dado a volta ao mundo, mas deve ter acontecido porque, na verdade, eu não me lembro de quase nada da minha vida! Por um lado quero vir-me embora, por outro ganho curiosidade em saber onde vai dar aquele caminho de sabedoria. E ele acaba aqui: “se todos temos muitas vidas… então todos já fomos mães uns dos outros… e devemos ver… cada pessoa com que nos cruzamos… como nossa mãe… e dedicar-lhe… todo o nosso agradecimento…”

E assim foi que voltei para casa uma hora depois. Impaciente.