Uma pessoa que parte deixa uma marca que não sai, tal como um prego na parede deixa sempre o seu buraco. Com o tempo, a vista adapta-se ao buraco e simplesmente deixa de o ver. Integra-o. (um buraco? onde?)
Uma pessoa deixada para trás representa o tempo que lhe ficou colado. Claro que também ela viveu, experimentou, ultrapassou barreiras, mas vemo-la sempre como estando no tal local, no tal período de tempo, associada a fulano ou a cicrano. E como isso não é mais verdade, quando topamos com os olhos nela, não sabemos o que fazer. Difícil será reagir como se a não reconhecêssemos e entabular uma conversa de apresentação. Por outro lado, ao fim de alguns anos, não temos a mínima noção do que ela pensa ou faz regularmente, pelo que não podemos assumir o que quer que seja. Caímos na entediante repetição da vida em condensado, a versão que trazemos sempre preparada para ocasiões do foro público. E pode, inclusive, ser doloroso olhar os olhos de quem já se entendeu um dia num domínio mais chegado, mais aconchegado. Ver os farrapos de uma amizade que, afinal, talvez não fosse. Pode ser um desalento identificar o pouco à-vontade, a desconfiança nos gestos, um acautelado manter de distância… A mim, que sou dada à saudade, bate logo a tristeza desses nós que já não soltam e daquilo que não pôde mais ser.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
4 comentários:
Tive a sensação que devia vir aqui hoje. Gostei da dissertação.
Será que é pertinente discutir a profundidade desses buracos? E haverá diferença entre "a vista adpatar-se ao buraco" e o buraco ser tapado (convertendo-se muitas vezes numa mancha mais clara que o resto da parede)?
Bjs,
ainise
ainise,
Também me ocorreu o tapar dos buracos. Eu como sou preguiçosa não tapo os meus e posso garantir que mesmo assim acabo por me esquecer deles. E sim, parece-me pertinentes dicutir a profundidade deles. Só a nível estético não sei se fará diferença... ;)
Podemos tapar, nao tapar, whatever.
Funciona com todos os casos de sumenos importancia.
Com aquele caso de suma importancia, até podemos recomeçar por outro caminho, mas o buraco está sempre lá. Eventualmente camuflado mas está sempre lá e o texto que melhor descreve esse sentimento é
Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa
adoro o poema; bem lembrado.
Enviar um comentário