04/10/07

no céu espelhado - I

Não vou pela poesia do mar para não secarmos todos de tédio. No geral, o que se quer é ler, entender, aceitar e, de preferência, sorrir. Se der para chegar à gargalhada, tanto melhor. Aqueles poucos que gostam de chorar ou, pelo menos, da facadinha gelada no meio do peito, esses, tentem perspectivar o que se segue a uma luz moderadamente sado-masoquista. Resulta sempre, e neste caso até não é difícil.

Os nomes dos companheiros destas fainas marinhas serão transformados, para que depois não me venham com merdas... Conteúdos menos próprios, se os houver, serão também com habilidade convertidos em preciosas metáforas que só os próprios entenderão no seu completo significado. Isto é, se a arte e o engenho mo permitirem. Senão, olha, azarecos! :)


No início faz-se por decorar os termos da marinhagem, bem como se tentam não trocar as patentes dos oficiais, coisa em nada fácil aqui para a distraída (mais tarde ignoram-se essas ignorâncias e remedeia-se dentro do possível).
No início a novidade é estranha, as pessoas são estranhas, todas parecem iguais, homogéneas, saltam aqui e ali algumas excepções, mas mais nada. Os termos são estranhos, os recantos desconhecidos, o espaço não tem propriedade e os marujos olham-nos com desconfiança.
No início a cabeça ainda está em terra, presa a tudo aquilo que ficou por fazer e por dizer, em banho-maria até ao regresso. A apreensão acompanha silenciosa cada movimento.

Mas depois...

Eu confesso: em condições normais, acordar ao som estridente de “ALVORADA, ALVORADA!” às sete da manhã, gritada por um altifalante estrategicamente colocado junto à minha alminha dormente, deixar-me-ia de muito mau humor. Muuuuito mau humor... (existem relatos assustadores daquilo que sou capaz em momentos de insanidade matinal). Mas também já notei que os azeites se me dissipam um pouco quando em comunidade. O que equivale a dizer que tenho vergonha na cara! Portanto, ao longo de cinco dias aturei alvoradas diárias sem mandar um palavrão que fosse. Qual palavrão, nem uma palavrinha! Esparramada no terceiro andar do beliche, abria um olho, sentia movimento lá em baixo no rés-do-chão e, invariavelmente, encontrava a IC19 cheia de speed a vestir as calças. Porque estava na hora do pequeno-almoço, ocasião mais que sagrada para o seu estômago revoltoso. Abria o outro olho e fixava o tecto de contraplacado. Porquê, porquê, porquê? Eram os único vocábulos que me ocorriam. Puxava o saco-cama até cima e escondia a cara para que a luz que se esgueirava por entre as frestas do cortinado individual não continuasse a exigir que me levantasse. Mas depois, à medida que o cérebro ia subindo à superfície (ou seja, que se apercebia de que toda a gente se mexia menos eu), lá perguntava as horas a custo. Sete e um quarto, sete e vinte, nunca menos. Hora de rebolar e tactear com o pé a cama de baixo, apoiar-me e descer do segundo andar para o primeiro e do primeiro para o chão. Trabalhoso. Lá em baixo esperava-me o pequeno caos que se desenrola quando seis pessoas se tentam vestir ao mesmo tempo em dois metros quadrados, com o brinde extra dos gavetões abertos ocuparem um terço do espaço disponível. Havia que pegar depressa no necessário e fugir para a casa-de-banho. Curiosamente, nunca apanhei engarrafamentos lá dentro, não sei porquê. E toda a gente parecia mais ou menos lavadinha, vá-se lá entender!

A essa hora madrugadora não se tem muita fome (excepção feita à camarada IC19, como é óbvio), pelo que o pequeno-almoço de leite, café, bolachas, pão hiper salgado e manteiga me parecia mais que suficiente. Depois, em terminado o repasto, havia que dar lugar ao cliente seguinte sem grandes demoras e entregar a loiça ao desgraçado que estivesse de quarto a lavá-la.

A Boss comandava as hostes do nosso pequeno grupo de dez elementos. Grupinho porreiro no seu grosso, mas lá iremos mais tarde... A primeira obrigação do dia era formar no convés para atribuição das faxinas, com a Boss sempre na frente da fila a controlar a situação. Os marinheiros formavam, por seu turno, à nossa frente e os oficiais rendiam-se com continências e tudo, a engraxar-nos com o pack-marinha completo. Tinha alguma graça, mas eu era mais sono!

Quando o mestre iniciava o seu discurso faxineiro, quase aposto que todos cruzávamos os dedos atrás das costas pedindo em silêncio ao nosso Deus para que não tivesse chegado a vez das casas-de-banho, esse Adamastor da vida a bordo. Eu, pelo menos, pedia ferverosamente, esmifradinha em concentração, com toda a fé que assiste ao bom agnóstico em altura de crise. Mas lá chegou o dia em que a reza não atingiu as altas influências...

(há-de continuar)

5 comentários:

Flip disse...

E assim, já a caminho da horizontalidade, fiquei a saber que existem beliches de 3 andares.

Até amahã!
*
Flip

...dream disse...

A vida de embarcado é sempre bem arrumadinha e desenvolvida em espaços restritos.
Tenho que partilhar contigo a estranheza de não haver engarrafamentos na casa-de-banho. Será que alguém sabia alguma coisa que tu não sabias?
Ficaremos a aguardar ansiosamente os relatos da limpeza da casa-de-banho...

Anónimo disse...

Miuda necessito de seu mail... ainda estou mareado mas muito melhor ... navegar é preciso...

Bjo JM

Anónimo disse...

Jà sem mareação (mas com pena) e de volta a esta faina, aguardo expectante a continuação.
Corto Maltese I

Anónimo disse...

Confesso que qd decidi tomar banho antes do desayuno (coisa que andava a evitar, com medo de demorar demasiado tempo e perder o precioso pequeno-almoço!) fiquei deveras surpreendida por não encontrar mais do que 3 almas dentro da casa-de-banho! Estranho...