17/06/08

dizer as palavras dos outros

A primeira vez que ouvi o poema “Aniversário”, de Pessoa na pele de Álvaro, foi numa encenação do grupo de teatro da Crinabel. Arrepiou-me. Os actores estáticos, muito brancos, como memórias congeladas. A iluminação dourada de um sonho – talvez porque as memórias não cheguem a ser verdades por inteiro. A entrada enérgica das crianças-Pessoa, jogando com os adultos como se de mobília se tratassem, como se fossem únicos seres vivos num reino moribundo. E a gravação ditando o compasso da acção. No tempo em que festejavam o dia dos meus anos… Lindíssimo.

A noite passada foi domingo e estaquei na rtp2, onde a Paula Moura Pinheiro conversava com uma senhora de idade. Que eu desconhecia. Só que gosto do programa e fiquei por ali. A senhora chama-se Germana Tânger e foi professora de dicção no Conservatório Nacional durante uma carrada de anos. Amiga de Almada Negreiros, José Régio, Vitorino Nemésio… Espalhava poesia. E então foi-lhe pedido que dissesse o “Aniversário”, coisa que logo fez e com uma naturalidade desconcertante. Com os sentimentos certos no momento exacto. Eu não sou muito de que se leia poesia (ou o que quer que seja), porque sempre me pareceu que se desvirtuava o sentido, que não se devia desapropriar assim o autor, bem como o leitor, das emoções, dos instantes seus. Mas ontem gostei.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar pela vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado –,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

3 comentários:

Anónimo disse...

Também eu me arrepiei no Teatro da Crinabel. Ainda oiço a voz da Tuxa.

Apesar de agora ver que este poema é mesmo apropriado para o que me espera na próxima 6ª feira,no Domingo passado não liguei nenhuma pois a minha cabeça estava nos Cabrais e tu não me ouviste. Bjs
Mac

calvinn disse...

Hum...ja conhecia o poema em causa. Nao o conhecia de cor e salteado, nem o tinha lido com a atenção devida. Fi-lo agora porque tu o colocaste aqui. Talvez por se aproximar a data do dia dos meus anos, uma certa nostalgia domingueira instalou-se e revivi alguns momentos em que se se festejou os meus anos. Reviver o passado atraves de aniversarios, pode ser desconcertante, intrigante mas sempre revigorante. É nestas alturas que se fazem balanços de vida e não na passagem de ano. O programa que falas , ja o vi a anunciar e nunca o "apanhei". O olhar da apresentadora sempre me cativou. Tem aquele ar de bruxinha boazinha que da gosto contemplar.

p.s. alguem que privou de perto com estes 3 nomes amiga de Almada Negreiros, José Régio, Vitorino Nemésio, terá N historias para contar. Seria uma pena deixar essas historias irem embora. Dai eu ser apologista que realmente todas as pessoas deveriam ter a obrigação de escrever um livro de memorias para que essas mesmas não se perdessem.
p.s.1 É Domingo , são 10 da manha e eu estou em casa a fazer o quÊ???? :)
p.s.2 sera que ja dominas a tecnica de "descascar" uma sardinha assada com os dentes:)?

Sempre atento ao que sua excelencia escreve.
Atentamente
calvinn

sara disse...

mac,
a 6f correu bem, não houve que vender a alma! nice...
podias ter ouvido a senhora em vez de pensar nos antepassados, mas talvez resultasse num exercício semelhante. :)

calvinn
"é nestas alturas que se fazem balanços de vida e não na passagem de ano" - so very true!
e sim!, a Paula Moura Pinheiro tem mesmo um toque de bruxinha. eheheh gosto imenso dela, muita expressão facial.
quanto às sardinhas, estou mestre claro! basta uma vez