21/09/07

vem lá chuva?

Desta vez foi ao contrário: primeiro veio a chuva e depois o amolador. A flauta de Pan entrou-me a tocar pelo quarto dentro e corri a espreitar à janela. Já não é o mesmo de antes, o amolador. Dantes era um velhote enrugado que empurrava um carrinho meio desengonçado, carregado de uma parafernália impressionante de ferramentas e guarda-chuvas. Já em miúda me explicavam "é para afiar facas e tesouras" e a coisa me parecia estranha. As facas precisavam de ser afiadas? Então não se compravam outras quando as primeiras se estragavam? Pois... Já nasci do lado de cá do consumo, é natural. Mas continuo impressionada. Houve uma época de interregno aqui na rua, deixámos de ouvir a flauta e eu assumi ter morrido o velhote. Pensei que seria o fim do hábito. E agora volta um amolador, mais novo (saí à rua para o espreitar) e que já não traz guarda-chuvas nem ferramentas à vista. Vem numa bicicleta de montanha com uma caixa presa na parte de trás e a roda de esmeril encaixada à frente, entre o assento e o guiador. Na boca a mesma flauta de vários tubos vai marcando o passo, enquanto os olhos se penduram nas portas e janelas dos prédios. À espera. Mas parece que ninguém o chama. Quem é que ainda afia facas?

7 comentários:

calvinn disse...

hahahah na minha terrinha, na urbanização onde eu vivo entre Sintra e Lisboa, a 300 metros do Ic19, ainda anda um senhor a passear os seus utensílios e com a flauta na boca la vai dando aos nossos ouvidos aquela musica inconfundível. Volta e meia quando estou em casa de manhã, fico a vê-lo afiar as facas e os cutelos de quem ainda usa as mesmas á muitos anos.Parece que voltei a ser criança .Que bom ainda se verem estes tradicionais oficios.

p.s.VIVA O OUTONO

Anónimo disse...

Cara S. o amolador tal como existia nos anos 60, 70 já não tem espaço para viver. As facas já estão afiadas e também já pouca gente as usa como facas. Servem apenas para barrar. A carne chega-nos cortada. Dos chapés de chuva o assunto está tratado com o mercado alternativo. Mesmo no estrangeiro e quando chove são vendidos a 5 euros máx. Por vezes surge o tal da motorizada mas não imagino como sobrevive. Este ano na Gulbenkian as lições sobre o Estado do Mundo foram claras nesse tema. O mundo mudou, não necessáriamente para melhor mas mudou, e não vale a pena sequer ficarmos tristes. Temos apenas de repensar a maneira de cá viver. O bairro londrino mais caro, por ter espaços verdes privados, fica na rota de aterragem dos voos que veem de África, mesmo na vertical do momento em que o Cdte de bordo acciona a abertura do trem de aterragem. Nessa altura os emigrantes ilegais, já congelados que lá se tinham escondido, caem e despenham-se nos relvados em posições estranhas. Segundo percebi já existe um código para chamar a pequena pickup que os vem buscar, ainda a descongelar. No inicio o funcionário explicava ao dono da casa que a morte pelo frio era indolor. Agora que tal já é sabido limitam-se a levá-los. As seguradoras não preveem estes casos, em que um africano mesmo magro pode escavacar um Jaguar XKE que tenha ficado ao relento.

will & Abe

calvinn disse...

Desculpe lá caro senhor anonimo , meter.me na conversa, mas discordo. Primeiro porque vivemos numa sociedade em que há mercado para tudo. Chegara o dia em que deixaram de haver certos oficios, mas ate chegar esse deu, ficamos todos muito velhinhos e gagas. quanto á historia dos senhores que caiem em posiçoes estranhas, de certeza que para breve iram inventar um seguro desses. Há seguros para tudo.

Os sinceros cordiais cumprimentos.

ass. Calvinn

Anónimo disse...

Cara S. permita-me que responda ao Sr. Calvinn.
Estimado senhor, infelizmente a economia de mercado não cria ela própria o mercado. Nas sociedades totalitárias, boas ou más, passa-se como diz. Já as seguradoras avaliam correctamente o risco e evitam situações que possam ser mal interpretadas pela moderna atitude de responsabilidade social. Na próxima sexta feita será, na Gulbenkian mais uma vez, lançado o livro acerca das lições do Estado do Mundo. Entretanto a leitura de um qualquer livro de economia de J. César das Neves, ou outro de maior fôlego, não me parece descabido. Mas dúvido que desconheça o que se passa, pelo que vejo na sua abordagem simpática, apenas uma tentativa de evitar à juvenil S. o confronto com a realidade. Tal atitude generosa merece o meu respeito.

Melhores cumprimentos,

Will & Abe

sara disse...

Conversem à vontade, meus caros.
Ó calvinn, achas mesmo que há mercado para tudo? Eu fiquei um bocado apreensiva com esta vida de amolador. Não consigo imaginar que alguém o chame para afiar facas! Conheces alguém que o faça?

calvinn disse...

Eu ja respondi a isso. Na minha rua e em outras ruas do meu bonito subúrbio, volta e meia anda um senhor com a sua gaita e a sua bicla e é chamado por varias pessoas que descem dos seus prédios e lhe pedem para afiar o que quer que seja. Ainda há mercado para os pequenos oficios. Tenho provas disso:) Porque felizmente no meu mundo, comheço muitas pessoas que de dedicam a fazer esses trabalhos que mais ninguem quer fazer. Vivemos num pais de doutores engenheiros, professores arquitectos e putanheiros. (Estes ultimos tambem se podem incluir nas demais profissoes). E cada vez vejo mais jovens ou menos jovens a queres aprender um oficio, seja bate chapa, seja marcenaria, seja pintor, ( nao estou a falar de quadros ).Eu acredito que haja sempre mercado para estes trabalhos, pela razao mais logica de todas. O outreo mercado, o dos engenheiros arquitectos professores e advogados, começa a estar saturado, começa a faltar emprego dentro dessas areas. Nas profissoes que vos falo...há sempre procura.
É claro que posso andar a viver no meu proprio sonho e estar tambem eu enganado. Prefiro pensar que não.
p.s.Esse livro sobre o Estado Novo, parece-me ser sugestivo.

cuprimentos.

SemNexo disse...

Primeiro, cara S., andas a ler-me os pensamentos... tinha no meu caderninho (sim, eu ainda escrevo num caderno e só depois passo para o computador) um post sobre os amoladores, não me atrevo a colocá-lo agora que me copiaste... Arrepiante!

Neste discussão estou com o Calvinn: sim conheço pessoas que usam os serviços do amolador,a minha casa é uma delas...Um dos problemas é que actualmente as facas e tesouras são de tão má qualidade, que não dá para amolar. Mas quem tenha um faqueiro a sério,recorrerá ao amolador seguramente.
Calvinn: não me parece que seja só uma questão de mercado a vontade de aprender ofícios (serei mais sonhadora ainda?)...
Penso que o não ceder ao comprar fácil é uma questão de princípio e inteligência na utilização de recursos. E as mentalidades de consumo tendem para a reversão. Acho que isso é um problema da geração anterior, na nossa já há muita gente preocupada com o que compra, come, veste,com o que se está a perder... Há muita gente saturada do urbanismo, do consumismo e outros ismos... a querer voltar às raízes, onde há espaço para amoladores, artesão, padarias boas, ...