Um dia chegou aqui um livro chamado “abre para cá” e, sem sabermos muito bem para quem era, acabou por ficar implícito que seria eu a leitora.
Mas vamos do princípio...
A 11 de Setembro de 2001 já todos sabemos o que aconteceu. As torres gémeas do World Trade Center em Nova Iorque vieram abaixo, bem como parte do Pentágono, e a brincadeira custou cerca de 10 mil vidas. Dito assim parece uma coisa que vem escrita nos livros de História e que decoramos a contra-gosto, com a cabeça apoiada numa mão, tal como fazíamos com os números da segunda guerra mundial.
A 11 de Setembro de 2002, um ano depois, o que aconteceu foi o tal livro.
Nesse dia solarengo a M. foi à praia com o seu mais-que-tudo, montada no mini moke. Para quem não conhece, um mini moke é um carro aberto, pequenino, ao estilo dos buggies com que os brasileiros passeiam os turistas nas dunas nordestinas.
Ao regressar o par à viatura, lá para a tardinha, M. deparou-se com um objecto caído no seu banco e, apesar de não lhe ser propriamente familiar, conseguiu distinguir nas suas formas... um livro! (eheheh, boquinha foleira). Um livrito pequeno de um tal Jacinto Lucas Pires que lhe dera o título “abre para cá” e onde se liam contos, uma dúzia deles. Estranhou e folheou-o. Logo na primeira página, aquela que tantas vezes fica em branco, alguém lhe deixara um recado. Atentado Poético: A quem encontrar este livro, que o saboreie com gosto. É um presente. Em tempo de tristes memórias vamos dar lugar à poesia das leituras.
Foi bonito, não foi? Uma história destas merecia uma revelação no seu desenrolar. E, de facto, até ameaçou um momento de epifania quando a M. mo estendeu e disse podes ler que eu não tenho paciência e eu o fui folheando até à quinta página, logo depois do índice, onde li: para a sara. Flash, momento!
Podia ter sido. Ao ler o livro encontrá-lo-ia carregado de referências metafóricas à minha vida e de mensagens subliminares para a minha pessoa. Seria uma luz que descia, qual espírito santo, a justificar-me a existência e a mostrar o caminho da verdadeira felicidade! Pois era... Mas a verdade é que não gostei nada dele. E não é que seja leitora esquisita (quase tudo o que leio me interessa). Curiosamente é apenas um livro em que fico por fora, à superficie, um livro cujas frases curtas não me permitem entrar na acção e em que não percebo nos contos a moral ou o sentido. Dou-vos um exemplo:
“A luz dos faróis muito forte na curva, uma camioneta desaparece a grande velocidade. No passeio, junto à parede, papéis e bocados de plástico; o homem olha para isto e continua. Da boca sai-lhe ar branco. Entre os prédios, o céu é um rectângulo estreito e escuro, e vão passando árvores e candeeiros e cartazes com caras a sorrir” (J. Lucas Pires).
Não sei... Dá-me a impressão de que o senhor quer despachar e, ao mesmo tempo, descrever tudo. Dêem-me outra perspectiva, se a tiverem.
Confesso que fiquei desiludida pelo facto de os astros, afinal, não se estarem a conjugar só para mim.
18/08/07
amostra sem valor (antónio gedeão)
Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível;
com ele se entretém
e se julga intangível.
Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.
Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.
Um comentário rápido ao poema do Gedeão. É bom.
Não é verdade que passamos a vida a tentar fazer-nos compreender pelos outros? A estender-nos para fora? A querer à força partilhar uma individualidade que, se prestarmos atenção, simplesmente não vive fora de nós? Pois é. Podemos saber muita coisa, conhecer o mundo de trás para a frente e as ciências pelo verso mas nunca somos capazes de abarcar o todo, de ser para além dos limites da nossa própria pele (a não ser, talvez, pela morte). E, no entanto, somos o centro de onde tudo parte, onde tudo regressa e o único sítio possível para se estar. Não posso deixar de aplaudir o senhor: “Universo sou eu, com nebulosas e tudo”.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível;
com ele se entretém
e se julga intangível.
Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para infinito.
Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.
Um comentário rápido ao poema do Gedeão. É bom.
Não é verdade que passamos a vida a tentar fazer-nos compreender pelos outros? A estender-nos para fora? A querer à força partilhar uma individualidade que, se prestarmos atenção, simplesmente não vive fora de nós? Pois é. Podemos saber muita coisa, conhecer o mundo de trás para a frente e as ciências pelo verso mas nunca somos capazes de abarcar o todo, de ser para além dos limites da nossa própria pele (a não ser, talvez, pela morte). E, no entanto, somos o centro de onde tudo parte, onde tudo regressa e o único sítio possível para se estar. Não posso deixar de aplaudir o senhor: “Universo sou eu, com nebulosas e tudo”.
13/08/07
o 1º de agosto
De volta!
Sei que há quem espere as impressões de San Sebatián, mas por enquanto ainda não curei a ressaca da viagem (metafórica, metafórica!). Deixo-vos um texto do início do mês, que não cheguei a "postar" porque estava inacabado na altura:
Já uma vez aqui comentei as memórias duma Fonte da Telha domingueira. A cena dos tachos, dos rádios a pimbalhar a tarde inteira, das criancinhas que guincham e dos pais de tanga – a quem só falta mesmo o palito ao canto da boca - a galar as meninas à beira-mar. Um mimo.
Então, perguntam vocês (com a sagacidade do costume), porquê voltar? Porquê arriscar de novo tamanha calamidade? Não sei bem. Ainda estou por decidir entre o puro azar e um prazer masoquista inconsciente.
A verdade é que estava calor, a carrinha da progenitora estava à porta com a irresistível combinação gasóleo+via verde e a suma inteligência que me dita o comportamento diário decidiu que, passada a hora do cancro, seria relativamente fácil alcançar a costa. Que fosse o sábado do início das férias de Agosto não me fez grande mossa. É que o Universo, supostamente, está sempre do meu lado...
Comecei a ouvi-los ao longe e, à medida que se aproximavam, o som tornava-se cada vez mais distinto. Saí das profundezas do mundo fantástico em que já estava mergulhada havia um bocado (não costumo adormecer na praia, mas nesse dia o ambiente estava favorável), saí, afastei a letargia e pus o ouvido à coca.
- ASSENTA-TE AÍ JÁ, JORGE! – urrou o pai, no que me parecia ser o início de um ataque de fúria.
- DEIXAZEOS IR PÁ ÁGUA CARALHO!! – foi a resposta que se seguiu da mãe, a gritos tais que pensei tratar-se de uma discussão entre marido e mulher trazida já de casa, do carro ou, quiçá, da noite anterior. Só percebi que não era tal quando o Jorge, criança de seus dez anos, contestou também em altos décibeis:
- EPÁ, TU DISSESTES QUE EU PODIA E AGORA DIZES QUE EU NÃO POSSO! PORQUÊ CARALHO??
E o pai o deixou andar.
Ambos os progenitores eram bastante gordos. Ela com um quê de gelatinosa e as pernas a rebentar de varizes. Ele um pote por inteiro, os calções prestes a rasgar. Apesar disso, quando lhes atentei nas caras percebi que eram novos. Muito novos. Quase tão novos como eu. E confesso que, se o resto não fosse já por si suficiente, este factor me deixaria muito impressionada.
A berraria continuou tarde fora. Ora porque iam para a água, ora porque voltavam, ora porque um dos miúdos guinchava à beira-mar, ora porque outro queria comer. Tudo, absolutamente tudo, era motivo para gritos, palavrões e veias inchadas no pescoço. Perguntava-me, para além do mais, se não ficavam cansados com tal actividade. É tão mais trabalhoso gritar do que falar! Se não tivesse visto e me contassem que uma família se exprimia durante três horas seguidas desta maneira, acho que não acreditava.
Às tantas, a pobre da Jessica, que teria uns três ou quatro anos, sentou-se na areia e começou a mexer-lhe e a rebolar-se. A mãe lançou-lhe um olhar sanguinário – que garanto que assustou os meus vinte e cinco aninhos -, aproximou-se em três grandes passadas e levantou-a pelos braços até à toalha mais próxima:
- ALEVANTA PARA CIMA FODA-SE, CHEIA DE AREIA OUTRA VEZ! PORCA. PORCA! TÁS A OUVIR? ÉS UMA PORCA BADALHOCA!
A criança, para meu espanto, parecia não fazer grande caso.
- METE-TE EM CIMA DA TOALHA E ENGOLE A BANANA JÁ! OLHA PARA AQUI SUA ESTÚPIDA, QUERES LEVAR OUTRA VEZ?
Nesse ponto eu estava já hipnotizada. Não conseguia tirar os olhos de cima deles, mas a verdade é que se tinham vindo instalar a três metros da minha toalha. E com tantos gritos era impossível ignorar-se a cena (podia ter-me afastado, como diz a M., mas nunca consigo resistir à quinta dimensão).
No fim da tarde o Jorge começou a espirrar. Grande drama que resultou na seguinte observação da mãe:
- RAIOS PARTA OS ESPIRROS, FOSTE PARA A ÁGUA, VOU-TE PARTIR OS CORNOS!!
E iam dando palmadas a torto e a direito, lá isso iam. Não se diga que ameaçavam em vão, que cão que ladra pelos vistos também pode morder.
(Pergunto-me onde é que se pára. É que não há culpas, aprende-se a ser pai com os próprios pais e estes tão pouco são responsáveis pela capacidade educativa que têm, já que também eles foram sujeitos ao mesmo. Será possível uma pessoa libertar-se destas correntes da infância? Onde é que se pára? Como é que se pára?)
O ex-libris deu-se no momento em que ouvi a mãe gritar, sem qualquer tipo de pudor:
- PEIDA-TE DUMA VEZ ANTES QUE EU TE DÊ UM PONTAPÉ NO OLHO DO CÚ!!
E o pai, o pote deitado na areia com o rabinho bem virado para mim, soltou um sonoríssimo traque.
Todos riram. Muito. Pela primeira vez percebi que partilhavam qualquer coisa entre si, qualquer coisa que talvez eu não alcançasse, mas que estava lá nesse momento de risota. Riam-se da mesma maneira, pelo mesmo motivo, com os mesmos olhos de gozo. Lembrei-me da anedota que o meu pai contava tantas vezes: “- se não têm televisão como é que se divertem à noite? - O pai dá puns e a gente-se ri-se!”.
Afinal é mesmo verdade!
Sei que há quem espere as impressões de San Sebatián, mas por enquanto ainda não curei a ressaca da viagem (metafórica, metafórica!). Deixo-vos um texto do início do mês, que não cheguei a "postar" porque estava inacabado na altura:
Já uma vez aqui comentei as memórias duma Fonte da Telha domingueira. A cena dos tachos, dos rádios a pimbalhar a tarde inteira, das criancinhas que guincham e dos pais de tanga – a quem só falta mesmo o palito ao canto da boca - a galar as meninas à beira-mar. Um mimo.
Então, perguntam vocês (com a sagacidade do costume), porquê voltar? Porquê arriscar de novo tamanha calamidade? Não sei bem. Ainda estou por decidir entre o puro azar e um prazer masoquista inconsciente.
A verdade é que estava calor, a carrinha da progenitora estava à porta com a irresistível combinação gasóleo+via verde e a suma inteligência que me dita o comportamento diário decidiu que, passada a hora do cancro, seria relativamente fácil alcançar a costa. Que fosse o sábado do início das férias de Agosto não me fez grande mossa. É que o Universo, supostamente, está sempre do meu lado...
Comecei a ouvi-los ao longe e, à medida que se aproximavam, o som tornava-se cada vez mais distinto. Saí das profundezas do mundo fantástico em que já estava mergulhada havia um bocado (não costumo adormecer na praia, mas nesse dia o ambiente estava favorável), saí, afastei a letargia e pus o ouvido à coca.
- ASSENTA-TE AÍ JÁ, JORGE! – urrou o pai, no que me parecia ser o início de um ataque de fúria.
- DEIXAZEOS IR PÁ ÁGUA CARALHO!! – foi a resposta que se seguiu da mãe, a gritos tais que pensei tratar-se de uma discussão entre marido e mulher trazida já de casa, do carro ou, quiçá, da noite anterior. Só percebi que não era tal quando o Jorge, criança de seus dez anos, contestou também em altos décibeis:
- EPÁ, TU DISSESTES QUE EU PODIA E AGORA DIZES QUE EU NÃO POSSO! PORQUÊ CARALHO??
E o pai o deixou andar.
Ambos os progenitores eram bastante gordos. Ela com um quê de gelatinosa e as pernas a rebentar de varizes. Ele um pote por inteiro, os calções prestes a rasgar. Apesar disso, quando lhes atentei nas caras percebi que eram novos. Muito novos. Quase tão novos como eu. E confesso que, se o resto não fosse já por si suficiente, este factor me deixaria muito impressionada.
A berraria continuou tarde fora. Ora porque iam para a água, ora porque voltavam, ora porque um dos miúdos guinchava à beira-mar, ora porque outro queria comer. Tudo, absolutamente tudo, era motivo para gritos, palavrões e veias inchadas no pescoço. Perguntava-me, para além do mais, se não ficavam cansados com tal actividade. É tão mais trabalhoso gritar do que falar! Se não tivesse visto e me contassem que uma família se exprimia durante três horas seguidas desta maneira, acho que não acreditava.
Às tantas, a pobre da Jessica, que teria uns três ou quatro anos, sentou-se na areia e começou a mexer-lhe e a rebolar-se. A mãe lançou-lhe um olhar sanguinário – que garanto que assustou os meus vinte e cinco aninhos -, aproximou-se em três grandes passadas e levantou-a pelos braços até à toalha mais próxima:
- ALEVANTA PARA CIMA FODA-SE, CHEIA DE AREIA OUTRA VEZ! PORCA. PORCA! TÁS A OUVIR? ÉS UMA PORCA BADALHOCA!
A criança, para meu espanto, parecia não fazer grande caso.
- METE-TE EM CIMA DA TOALHA E ENGOLE A BANANA JÁ! OLHA PARA AQUI SUA ESTÚPIDA, QUERES LEVAR OUTRA VEZ?
Nesse ponto eu estava já hipnotizada. Não conseguia tirar os olhos de cima deles, mas a verdade é que se tinham vindo instalar a três metros da minha toalha. E com tantos gritos era impossível ignorar-se a cena (podia ter-me afastado, como diz a M., mas nunca consigo resistir à quinta dimensão).
No fim da tarde o Jorge começou a espirrar. Grande drama que resultou na seguinte observação da mãe:
- RAIOS PARTA OS ESPIRROS, FOSTE PARA A ÁGUA, VOU-TE PARTIR OS CORNOS!!
E iam dando palmadas a torto e a direito, lá isso iam. Não se diga que ameaçavam em vão, que cão que ladra pelos vistos também pode morder.
(Pergunto-me onde é que se pára. É que não há culpas, aprende-se a ser pai com os próprios pais e estes tão pouco são responsáveis pela capacidade educativa que têm, já que também eles foram sujeitos ao mesmo. Será possível uma pessoa libertar-se destas correntes da infância? Onde é que se pára? Como é que se pára?)
O ex-libris deu-se no momento em que ouvi a mãe gritar, sem qualquer tipo de pudor:
- PEIDA-TE DUMA VEZ ANTES QUE EU TE DÊ UM PONTAPÉ NO OLHO DO CÚ!!
E o pai, o pote deitado na areia com o rabinho bem virado para mim, soltou um sonoríssimo traque.
Todos riram. Muito. Pela primeira vez percebi que partilhavam qualquer coisa entre si, qualquer coisa que talvez eu não alcançasse, mas que estava lá nesse momento de risota. Riam-se da mesma maneira, pelo mesmo motivo, com os mesmos olhos de gozo. Lembrei-me da anedota que o meu pai contava tantas vezes: “- se não têm televisão como é que se divertem à noite? - O pai dá puns e a gente-se ri-se!”.
Afinal é mesmo verdade!
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