13/08/07

o 1º de agosto

De volta!
Sei que há quem espere as impressões de San Sebatián, mas por enquanto ainda não curei a ressaca da viagem (metafórica, metafórica!). Deixo-vos um texto do início do mês, que não cheguei a "postar" porque estava inacabado na altura:


Já uma vez aqui comentei as memórias duma Fonte da Telha domingueira. A cena dos tachos, dos rádios a pimbalhar a tarde inteira, das criancinhas que guincham e dos pais de tanga – a quem só falta mesmo o palito ao canto da boca - a galar as meninas à beira-mar. Um mimo.

Então, perguntam vocês (com a sagacidade do costume), porquê voltar? Porquê arriscar de novo tamanha calamidade? Não sei bem. Ainda estou por decidir entre o puro azar e um prazer masoquista inconsciente.

A verdade é que estava calor, a carrinha da progenitora estava à porta com a irresistível combinação gasóleo+via verde e a suma inteligência que me dita o comportamento diário decidiu que, passada a hora do cancro, seria relativamente fácil alcançar a costa. Que fosse o sábado do início das férias de Agosto não me fez grande mossa. É que o Universo, supostamente, está sempre do meu lado...

Comecei a ouvi-los ao longe e, à medida que se aproximavam, o som tornava-se cada vez mais distinto. Saí das profundezas do mundo fantástico em que já estava mergulhada havia um bocado (não costumo adormecer na praia, mas nesse dia o ambiente estava favorável), saí, afastei a letargia e pus o ouvido à coca.

- ASSENTA-TE AÍ JÁ, JORGE! – urrou o pai, no que me parecia ser o início de um ataque de fúria.

- DEIXAZEOS IR PÁ ÁGUA CARALHO!! – foi a resposta que se seguiu da mãe, a gritos tais que pensei tratar-se de uma discussão entre marido e mulher trazida já de casa, do carro ou, quiçá, da noite anterior. Só percebi que não era tal quando o Jorge, criança de seus dez anos, contestou também em altos décibeis:

- EPÁ, TU DISSESTES QUE EU PODIA E AGORA DIZES QUE EU NÃO POSSO! PORQUÊ CARALHO??

E o pai o deixou andar.

Ambos os progenitores eram bastante gordos. Ela com um quê de gelatinosa e as pernas a rebentar de varizes. Ele um pote por inteiro, os calções prestes a rasgar. Apesar disso, quando lhes atentei nas caras percebi que eram novos. Muito novos. Quase tão novos como eu. E confesso que, se o resto não fosse já por si suficiente, este factor me deixaria muito impressionada.

A berraria continuou tarde fora. Ora porque iam para a água, ora porque voltavam, ora porque um dos miúdos guinchava à beira-mar, ora porque outro queria comer. Tudo, absolutamente tudo, era motivo para gritos, palavrões e veias inchadas no pescoço. Perguntava-me, para além do mais, se não ficavam cansados com tal actividade. É tão mais trabalhoso gritar do que falar! Se não tivesse visto e me contassem que uma família se exprimia durante três horas seguidas desta maneira, acho que não acreditava.

Às tantas, a pobre da Jessica, que teria uns três ou quatro anos, sentou-se na areia e começou a mexer-lhe e a rebolar-se. A mãe lançou-lhe um olhar sanguinário – que garanto que assustou os meus vinte e cinco aninhos -, aproximou-se em três grandes passadas e levantou-a pelos braços até à toalha mais próxima:
- ALEVANTA PARA CIMA FODA-SE, CHEIA DE AREIA OUTRA VEZ! PORCA. PORCA! TÁS A OUVIR? ÉS UMA PORCA BADALHOCA!
A criança, para meu espanto, parecia não fazer grande caso.
- METE-TE EM CIMA DA TOALHA E ENGOLE A BANANA JÁ! OLHA PARA AQUI SUA ESTÚPIDA, QUERES LEVAR OUTRA VEZ?

Nesse ponto eu estava já hipnotizada. Não conseguia tirar os olhos de cima deles, mas a verdade é que se tinham vindo instalar a três metros da minha toalha. E com tantos gritos era impossível ignorar-se a cena (podia ter-me afastado, como diz a M., mas nunca consigo resistir à quinta dimensão).

No fim da tarde o Jorge começou a espirrar. Grande drama que resultou na seguinte observação da mãe:
- RAIOS PARTA OS ESPIRROS, FOSTE PARA A ÁGUA, VOU-TE PARTIR OS CORNOS!!

E iam dando palmadas a torto e a direito, lá isso iam. Não se diga que ameaçavam em vão, que cão que ladra pelos vistos também pode morder.

(Pergunto-me onde é que se pára. É que não há culpas, aprende-se a ser pai com os próprios pais e estes tão pouco são responsáveis pela capacidade educativa que têm, já que também eles foram sujeitos ao mesmo. Será possível uma pessoa libertar-se destas correntes da infância? Onde é que se pára? Como é que se pára?)

O ex-libris deu-se no momento em que ouvi a mãe gritar, sem qualquer tipo de pudor:
- PEIDA-TE DUMA VEZ ANTES QUE EU TE DÊ UM PONTAPÉ NO OLHO DO CÚ!!
E o pai, o pote deitado na areia com o rabinho bem virado para mim, soltou um sonoríssimo traque.

Todos riram. Muito. Pela primeira vez percebi que partilhavam qualquer coisa entre si, qualquer coisa que talvez eu não alcançasse, mas que estava lá nesse momento de risota. Riam-se da mesma maneira, pelo mesmo motivo, com os mesmos olhos de gozo. Lembrei-me da anedota que o meu pai contava tantas vezes: “- se não têm televisão como é que se divertem à noite? - O pai dá puns e a gente-se ri-se!”.

Afinal é mesmo verdade!

5 comentários:

Francisco José Santos disse...

Blog muito agradável! Parabéns.

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Francisco José Santos

Anónimo disse...

Vê-se mesmo que estamos na "Silly Season".... Um post deste calibre e nem um comentário de geito.

"Tout le Portugal" está a banhos e nem sabe que o "novo Eça" acabou de publicar o fiel retrato desta Nação no século XXI!

calvinn disse...

pelos caminhos de Portugal , eu vi tanta coisa linda...

Anónimo disse...

.....
-...de fazer inveja a Ettore Scola
(Feios,Porcos e Maus)...
-...narrativa bilhante e paradi-
gmática do "undergound" portu- guês...
-...indespensável a sua leitura aos
estudiosos de sociologia...

Estes são alguns excertos da critica especializada.

Agora "mesmo,mesmo"...CAGUEI-ME a rir, até parecia que estava a ouvi-los.
Brindaste-nos com mais um texto delicioso. Dá muito gozo ler as tuas estórinhas.
Quando quiseres, vens com o titio ao futebol,ver o GLORIOSO,claro está( também porque é lá que está o povo)e assim terás mais matéria para escrever sobre a maneira de estar e linguajar dos compatriotas do Sócrates.

VIVA A REGIONALIZAÇÃO.
DIZER PALAVRÕES NÃO É EXCLUSIVO DO PORTO,CARALHO.
FALAR AOS BERROS NÃO É PROPRIDADE DOS POLITICOS.

No fim, e tal como a familia, não somos todos amigos ???

Anónimo disse...

http://www.artfairsinc.com/

rio tinto