Aos Domingos a cidade parecia saída de um sonho.
[Nos sonhos deambula-se muitas vezes sozinho, encaram-se portas fechadas em largas ruas de asfalto coberto por pó alaranjado. Anda-se meio anestesiado pela simples quietude do mundo.]
O vento quente levantava-lhe os cabelos, como antes imaginara. Antes. Antes de estar ali, nessa cidade aos Domingos fantasma.
Mas, descendo a rua, metia-se outra vez em Moscovo, no apartamento que se encaixotava num subúrbio, na rigidez dos olhares que se lhe cruzavam e no vestido azul da protagonista. É que, às vezes, os livros não nos largam.
E então tinha que parar e deixar passar um carro ocasional, dado que na cidade fantasma as passadeiras tinham apenas função decorativa. Deixava-o passar: uma carrinha negra grande, acelerando os vidros fumados alcatrão abaixo; coelhinho da playboy colado na traseira.
Para chegar onde ia, o único café aberto em dia de descanso, desceria ainda dois quarteirões mais. Cruzaria três hippies sentados num degrau, expondo os seus artesanatos. Topá-los-ia à distância, as rastas de um, os óculos redondos do outro (protegendo do sol num dia cinzento), a preguiça dos dois, e os olhos da rapariga a estudá-la, de cima abaixo, em busca de referência. “Do you want to see our art?” decidido que ficava, como apropriado, o modo de abordagem. Uns breves segundos atentos no livro que levava na mão bastariam. Mas que não, gracias.
Chegada à esquina encontraria um altifalante virado para a rua, pregado na parede, deitando para a rua a música que se fazia ouvir no café. “Um chamariz”, pensaria. “Um chamariz de turistas, pensam eles”. Êxitos internacionais em versão chill out por vozes de cama. Plumas nos canteiros à porta. E uma selecção gourmet de chocolates e bombons lá dentro, para além de grande poltronas entre o ferro e o salmão, iluminadas por focos impecáveis. Algo caído de um outro hemisfério a que, quando calhava, acabava por recorrer.
Faria sentido pensar em Moscovo? Em macacos que têm medo a colibris? Em saltos quânticos de objectos perdidos na selva? Faria sentido que uma pessoa levasse sempre mosquitos consigo, onde quer que fosse? E que uma dupla face pudesse ter filhos sem antes escolher quem é?
Sentar-se-ia então lendo Dawkins negar a existência de Deus. Não entenderia por que raio seria ainda necessário fazê-lo. Tudo o mais parecia bastar.
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3 comentários:
Cada vez mais elaborada a sua prosa. Com o condão de me fazer ler e reler para lhe tirar o maximo de sumo. E confesso que nos tempos que correm quando me vejo perante textos que requeiram nova leitura abandono-os por falta de paciencia.
Escreva pouco, assim assim ou muito, mas escreva.
Confesso que usualmente, os textos que necessitam de ser lidos e relidos para serem compreendidos, me atraem pouco. Mas talvez na ânsia de saber o que te vai na alma, leio e releio os teus.
E aprendo sempre coisas. Além de ficar a saber o que julgo que te lá vai.
Também nos valha que hoje em dia existe a actividade "googlar".
Li a 1ª vez, no Estoril, logo após um bom almoço, em casa de produtor. Os vapores (e não só) impediram qualquer entendimento.
Valha-nos Deus (pode ser que exista!) que o Clooney me deixou beber este.
Bjs. Mtos
Estás a escrever bem garina!
Não procurando saber exactamente o que te vai na alma, uma coisa é certa, é uma alma observadora, perguntadora, e que escreve bem!
Deus e a sua existência, discussão eterna, sem forma cientifica de o provar resta a uns defenderem a sua existência e a outros negá-la!
Enfim...facto é que o tema tem sido uma inspiração literária importante e assim sendo, já valeu:-)
E como antes tarde que nunca PARABÉNS!!!
Beijocas
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