18/11/08

acho que vou voltando

Aos Domingos a cidade parecia saída de um sonho.

[Nos sonhos deambula-se muitas vezes sozinho, encaram-se portas fechadas em largas ruas de asfalto coberto por pó alaranjado. Anda-se meio anestesiado pela simples quietude do mundo.]

O vento quente levantava-lhe os cabelos, como antes imaginara. Antes. Antes de estar ali, nessa cidade aos Domingos fantasma.

Mas, descendo a rua, metia-se outra vez em Moscovo, no apartamento que se encaixotava num subúrbio, na rigidez dos olhares que se lhe cruzavam e no vestido azul da protagonista. É que, às vezes, os livros não nos largam.

E então tinha que parar e deixar passar um carro ocasional, dado que na cidade fantasma as passadeiras tinham apenas função decorativa. Deixava-o passar: uma carrinha negra grande, acelerando os vidros fumados alcatrão abaixo; coelhinho da playboy colado na traseira.

Para chegar onde ia, o único café aberto em dia de descanso, desceria ainda dois quarteirões mais. Cruzaria três hippies sentados num degrau, expondo os seus artesanatos. Topá-los-ia à distância, as rastas de um, os óculos redondos do outro (protegendo do sol num dia cinzento), a preguiça dos dois, e os olhos da rapariga a estudá-la, de cima abaixo, em busca de referência. “Do you want to see our art?” decidido que ficava, como apropriado, o modo de abordagem. Uns breves segundos atentos no livro que levava na mão bastariam. Mas que não, gracias.

Chegada à esquina encontraria um altifalante virado para a rua, pregado na parede, deitando para a rua a música que se fazia ouvir no café. “Um chamariz”, pensaria. “Um chamariz de turistas, pensam eles”. Êxitos internacionais em versão chill out por vozes de cama. Plumas nos canteiros à porta. E uma selecção gourmet de chocolates e bombons lá dentro, para além de grande poltronas entre o ferro e o salmão, iluminadas por focos impecáveis. Algo caído de um outro hemisfério a que, quando calhava, acabava por recorrer.

Faria sentido pensar em Moscovo? Em macacos que têm medo a colibris? Em saltos quânticos de objectos perdidos na selva? Faria sentido que uma pessoa levasse sempre mosquitos consigo, onde quer que fosse? E que uma dupla face pudesse ter filhos sem antes escolher quem é?

Sentar-se-ia então lendo Dawkins negar a existência de Deus. Não entenderia por que raio seria ainda necessário fazê-lo. Tudo o mais parecia bastar.