05/10/07

no céu espelhado - II

O dia das casas-de-banho acabou por me passar de raspão. É que melhor que fazer parte de um grupo relativamente igualitário, só mesmo ter por chefe um elemento pleno de actividade e vontade de desentupir retretes! Alá é grande. A Big Boss tomou em mãos esse mal-amado encargo e delegou aos subordinados tarefas mais tragáveis, como a limpeza das cobertas e da messe. Isto, lá está!, porque sou gaja, que os machos tiveram mesmo de lavar o seu próprio chavascal - e divertiram-se à brava com a mangueira, que eu bem vi o Lerpas fazer tiro a qualquer alvo móvel que passasse no corredor...

Mas, antes de mais acrescentar, importa apresentar uma personagem de valor.
Cajó desde cedo se fez notar – pelo menos por mim. Estava-se então no primeiro dia e acabávamos de iniciar a primeiríssima faina de mastros, momento algo atabalhoado devido à falta de prática e de organização. Imagine-se a coisa como um pequeno formigueiro em que as obreiras sabem que têm de trabalhar mas, por qualquer motivo, perderam a química que as organiza. Todas elas buscam algo que fazer e atiram-se às funções vagas criando algum caos. E no meio desse caos imaginem agora uma formiga de panamá enterrado até aos olhos, sandália grossa à turista e meia por baixo (também muito à turista) e câmara de filmar em punho. Imaginem que essa formiga deambulava no meio do atarefanço das outras com passinhos cuidadosos e olhar de espectador, levantando e baixando a câmara. Continuemos o exercício de imaginação: e se, a páginas tantas, ela virar a câmara para a sua própria cara, torcendo também o écran para se poder ver e começar a relatar o que se passa à volta num misto de excitação à David Attenborough e de pasmo de visitante de zoo ante a esperteza dos macacos? “Aqui estamos verdadeiramente DENTRO de uma faina marinha, veja-se a azáfama dos recém-chegados”. Não fosse a superioridade que o nariz empinado lhe exibia, até seria uma personagem engraçada. Mas não. A coisa prometia.
Nessa noite calhou ficarmos no mesmo grupo de quarto à ponte (quer dizer, estávamos de turno na ponte, o sítio onde se orienta a navegação). Éramos umas seis pessoas, Cajó incluído, numa cabine onde o oficial mostrava os aparelhos de GPS e de radar e ensinava a marcar pontos geográficos numa carta. A criatura pairava por ali numa atitude senhorial, cheirava os cantos com soberba como se aquilo que lhe ensinavam fosse óbvio e, às tantas, veio encostar-se a mim enquanto eu marcava os tais pontos, insistindo para que o fizesse de outro modo. Irritadíssimo. “Isso assim é uma parvoíce, demoras muito mais tempo, ora põe aqui o compasso!” E tentava tirar-me o instrumento das mãos à força. Eu decidi lançar-lhe o olhar nº37 de “baza daqui já, não me chateies, faço como eu quiser” e ele amansou um bocado, embora se mantivesse por ali a bufar e a encolher os ombros. Foi a partir daí que o detestei. Umas horas mais tarde viria a sentar-se na cadeira do comandante com toda a lata do Universo, ante o olhar estupefacto de um marinheiro que só lhe perguntava “está confortável aí?”. Ele assentia, não sei se fingindo não perceber a ironia da pergunta, se de facto padecendo de dificuldades de interpretação das expressões faciais. Quando lhe disse que se calhar não era suposto ele ocupar aquela cadeira, perguntou entre o indignado e o apanhado em falha “porque é que não havia de poder??”. E eu abstive-me de comentar mais. Outra meia-hora e viria a alimentar um diálogo tenso com o oficial de turno por causa de uma colega ausente. A senhora em causa retirara-se para a camarata sem avisar alminha e o oficial dizia-nos que no dia seguinte falaria com ela, ao que o Cajó se exaltou (era sua amiga, a tal) e exclamou num repente: “não vai fazer nada porque eu passo-lhe um atestado a dizer que ela estava doente!”. Facilmente se imagina a piada que o oficial não achou ao comentário... Respondeu-lhe, à militar, que ele bem podia escrever que doíam os dentes à senhora (porque era dentista), que isso não a impediria de trabalhar porque não se faz nada com os dentes. Então deu uma travadinha ao Cajó. Encheu o peito, emproou-se e disse: “Nesse caso eu vou para baixo também, faltamos os dois, e eu vou escrever um relatório não-sei-quê sobre isto”. Estando já fora da cabine, estendeu a mão para o inteiror e disse “Eng. Ricardo, boa noite” com o ar mais solene que conseguiu. Mas o oficial não se mexeu, olhou-o com tal estupefacção e dureza que eu pensei ir assistir a uma cena mesmo desagradável. Um segundo, dois segundos, três... Então Cajó, inesperadamente, soltou uma gargalhada ruidosa cheia de exagero. “Estou-me a meter consigo!”. O oficial não se ria e eu continuava a pensar isto vai mesmo acabar mal. Olhávamos todos uns para os outros, a desejar que o bicho desaparecesse de uma vez. Ninguém se riu, mas acabou por desconversar-se e fingir que nada tinha acontecido. A personagem teria que passar a ser ignorada.

Nessa noite dormi quatro horas. Pela manhã a cabeça estava vazia e tudo aquilo que me diziam fazia ricochete. O sol de chapa também não ajudava e o ócio das horas livres sem perspectiva de ocupação acabou por me apontar a direcção evidente: cama. Foi só subir as três etapas e deixar cair a cabeça (que parecia pesar uma tonelada) e, em dois segundos, estava profundamente a dormir. Acordei com um simpático no altifalante “guarnição e instruendos, faina de mastros prevista para as duas horas”. Sim, sim, já vai. Voltei a acordar com a cabecinha da IC19 a espreitar no meio do cortinado: “pssst, há faina de mastros agora”. E eu “vou já”. E acabei por ir, só que passada hora e meia, já tudo bem içado e o pessoal refastelado. :)

8 comentários:

Anónimo disse...

:)

calvinn disse...

Quando li o nome de cajo, pensei. Ó nao ela achou piada a um cajo, vai.se apaixonar por um cajo...credo tanto nome no mundo e escolheu um cajo....so pode ser maluca. Depois pensei, ó nao ela fez o tal olhar mortifero que ela diz que mata qualquer um , ou pelo menos eu acabei agora mesmo de idealizar que ela diz isso, e afinal nada, ela nao matou ninguem. Tinha tido muito mais piada se por exemplo alguem gritasse, instruendo cajo, va ali apanhar aquele peixe. E ele respondia com ar atonito...qual peixe. E tu muito prestavel e com um ar sedutor, puxavas a t-shirt pra cima, mostrando uma barriga,tremendamente sexy, quase muito gostosa e com o teu ar mais chegavas ao pe dele, os teus labios quase roçando os dele e dizias olhos nos olhos ...AQUELE ALIIIII Ó PALAHÇOOOOOOOOOOOO. e depois empurravas o gajo pra dentro de agua. A tripulação batia palmas e á noite era-te oferecido uma caixa de pasteis de belem ainda quentinhos.

p.s. Já ias fazer uma visita à feira.
p.s.1 pede ai oas deus chuvinha sff

Anónimo disse...

olhe lá maruja Sara acho bastante insultuoso tratar-me por Cajó, agradeço a inserção do prefixo DR. antes do nome a fim de justificar a minha vontade de me submeter a assentos que em nada diferem do meu... consultório né...

sara disse...

calvinn,
idealizas muita coisa, homem! olhar que mata?? ainda não desenvolvi esse. Mas digo-te que essa descrição da hipotética cena foi tão perfeita que até eu me achei hiper hiper sexy!! Essa imaginação promete. Rematar com os pasteis de belém deu o toque especial...

Dr. Cajó,
As minhas desculpas. Não sei o que me passou pela cabeça, tamanho desrespeito não se voltará a repetir! Também não tinha pensado na questão dos assentos do consultório. Naturalmente tudo não passou de uma questão de hábito, portanto.

Anónimo disse...

Jolin, e onde é que eu estava quando se passou isso tudo? Já que sou do vosso grupo e tb estava na ponte, por que motivo fui eu perder a melhor cena da viagem? (e perder a oportunidade de lhe mandar umas bocas...)

sara disse...

su,
Devias tar lá fora pk foi num momento um bocado morto... Mas a Wonder-Sister tava de certeza. Dos outros elementos já n tenho a certeza.

Anónimo disse...

Su, sorry, se eu soubesse que este momento maravilha ia acontecer nunca tinha aceite a tua substituição(salvação) no leme!
Mas mesmo quase morta de sono e cansaço ainda tinha os sentidos mais ou menos capazes e a descrição não pode ser mais fiel. Ainda consigo ouvir a gargalhada atrapalhada, desajustada numa tentativa de conseguir a redenção! O silêncio que se seguiu foi confrangedor. Mas tudo tinha uma finalidade nobre, desculpar a Enjoada, a melhor amiga do Cajó!
Cara d'Anjo, thanks for the nick, estou já a programar adquirir uma farduncha a condizer com o nome para levar na próxima viagem.
Imaginem "euzinha" num fatito de super heroína! Será que de cada vez que rodopiar aparecem 1000 pratos lavaditos?

sara disse...

"Enjoada" é muito bom! "Cara d'Anjo" também foi ideia tua... E fazes-me sempre rir com os comentários q deixas. Começo a achar que esta criação (relato fiel?) devia ser partilhada!!
Imaginar-te de fato e capa, a rodopiar, enquanto pratos voam em todas as direcções, para além de mto Mary Poppins, é hilariante... :D
bjs